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A mostrar mensagens de fevereiro, 2021

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 Os gregos, de quem tudo nos chegou, bem sabiam que o homem é um conglomerado mole de forças contraditórias, tantas vezes instintivas, tantas vezes racionais. Porém, as duas primeiras, Eros, o desejo, e Hipnos, o sono, acabarão sempre por se dissolver numa última e absoluta, Tanatos, a morte. Ares, o deus da guerra e do triunfo, supremo desejo de dominação, ele mesmo só pode triunfar através da morte. Não houve em toda a história do homem civilização que mais levasse ao extremo essa união entre o desejo, o sono e a morte do que a romana. E, no extremo desse extremo, estavam os próprios imperadores e, acima de todos, Tibério. Prestes a morrer, o violento Augusto, referindo-se ao seu genro Tibério que lhe iria suceder no Império, exclamou para os escravos que o rodeavam: "Desgraçado povo que vai cair em tão lentas mandíbulas.". E, no entanto, o monstruoso Tibério era ele mesmo um conglomerado de for ças contraditórias. Assistira aos assassinatos ordenados por Augusto na sua asc...

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 Regresso solitário ao meu passado porque é impossível regressar ao meu passado e, por isso, ninguém me pode acompanhar nesse regresso. Além disso, o meu passado é uma lenda triste, cheia de temor e de culpa de o ter, cheia de impulsos infantis e amores adultos que nunca tive porque eu nunca fui eu mesmo e ignorava que alguma vez poderia sê-lo, e ainda não sei se sou eu mesmo ou alguma dia serei porque sempre quis ser outro que não eu mesmo, e se fosse outro queria ser outro para além desse outro. A minha lenda recordo-a agora com cenas que podem ser substituídas por outras cenas, que podem ser cortadas e coladas como se faz nos filmes porque, como nos filmes, tudo na vida pode ser cortado e colado, porque o ângulo em que as cenas são vistas pode mudar a cada instante com o modo de ver e os sentimentos do autor e aquilo que não é modo de ver nem sentimentos e nem ele mesmo sabe o que é, porque tudo nele muda a cada instante e, no instante seguinte, ele já não ele. O que mais me dói...

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 O nacionalismo não é hoje mais do que roupa velha num homem que começa a surgir  como novo. Mais do que nunca, percebe-se agora que é uma mentira da história, construção dos poderes e não alma dos povos. A alma dos povos é a Pátria, a língua dos pais, mais ainda do que a terra dos pais. A terra dos homens é hoje todo o mundo. Por isso, quem ama os homens só pode ser homem de todo o mundo. Vejo-me tão patriota como internacionalista. Patriota porque, como dizia o mago da Rua dos Douradores, a minha Pátria é a língua portuguesa, com o seu mar e os seus montes e o cheiro de ambos, com o barro e o vinho que me correm no sangue, com os seus alimentos que em nenhuma outra parte do mundo têm este sabor porque se alimentam de nós, a Pátria portuguesa com as suas festas e a sua Páscoa que não é passagem entre dois mares mas permanência do amor terrestre que um mito celeste consagrou. Como acredito que não existe Deus e que Cristo foi um terno mestre secreto dum convento junto ao Mar M...

O NOVO LIVRO DO DESASSOSSEGO

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  Fechado em casa, aqui estou, peixe dentro do aquário para poder viver. Lá fora o ar é hostil, as bocas e as mãos são perigosas. Poderia ser um tempo de meditação, mas a angústia e o tédio sempre latentes levam-me à dispersão. Leio uma ou duas páginas dum romance, outras tantas de um qualquer filósofo cuja obra me venha à mão em primeiro lugar - Cioran aparece-me tantas vezes - consigo chegar à meia dúzia de páginas de poesia. Apenas a música, ao fundo, nunca me abandona. Olho pela ampla janela do meu quarto, e a avenida da Boavista vazia e com o mar ao longe torna mais frio o tempo. O vento faz tremer o arbusto que tenho plantado num grande vaso na varanda voltada para o sol, tronco alto descarnado e fino, sustentados em raízes sólidas como bolas de chumbo. Só tem folhas nas pontas dos ramos, dedos abertos para o céu sem esperança. Tudo parece frágil nesse arbusto, mas ele está ali há tantos anos que me parece ainda mais velho do que eu que o plantei. Ali ficará quando eu desapar...

O NOVO LIVRO DO DESASSOSSEGO

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Contento-me em ser pequeno porque sou grande. E o que é ser grande? É perceber a morte que há em tudo, em nós e no que nos é exterior, e no exterior do exterior, e dentro de tudo o que é interior e exterior, e dentro do que está dentro. Sou um pequeno camponês ao longe, breve como as árvores que por nós passam e nós sentimos que passamos por elas. Como ninguém, o camponês sabe que tudo é ilusão. Por isso assenta os pés na terra, a única realidade sólida a que se poderá agarrar porque ela o irá agarrar. A terra é a sua alma e a sua alma é a terra. E a sua alma está em todos os lugares da terra porque não pertence a lugar nenhum. Vejo-me, ao longe, de pé a contemplar-me criança no meu berço. Vejo-me ao entardecer quando soam as trindades. Mas as trindades não são as trindades porque embarquei num comboio que me levou para longe de mim mesmo, para muito longe. Ficou na gare a minha imagem inclinada frente a uma mulher também inclinada e que a natureza diz que me irá devorar. Fiquei eu sal...