NLD

 Regresso solitário ao meu passado porque é impossível regressar ao meu passado e, por isso, ninguém me pode acompanhar nesse regresso. Além disso, o meu passado é uma lenda triste, cheia de temor e de culpa de o ter, cheia de impulsos infantis e amores adultos que nunca tive porque eu nunca fui eu mesmo e ignorava que alguma vez poderia sê-lo, e ainda não sei se sou eu mesmo ou alguma dia serei porque sempre quis ser outro que não eu mesmo, e se fosse outro queria ser outro para além desse outro.

A minha lenda recordo-a agora com cenas que podem ser substituídas por outras cenas, que podem ser cortadas e coladas como se faz nos filmes porque, como nos filmes, tudo na vida pode ser cortado e colado, porque o ângulo em que as cenas são vistas pode mudar a cada instante com o modo de ver e os sentimentos do autor e aquilo que não é modo de ver nem sentimentos e nem ele mesmo sabe o que é, porque tudo nele muda a cada instante e, no instante seguinte, ele já não ele.

O que mais me dói neste regresso ao passado é poder pensar tudo de novo e não poder fazer tudo de novo, certamente para errar de novo mas com a consolação de que o fiz de novo e o que fiz foi diferente, e que, já não sendo eu mesmo, fui o outro que desejei ser, e o meu outro erra e sofre tanto como eu mesmo.

É ridículo o mito indiano do renascimento porque inútil. Eu vivo sou outro a cada instante que passa, sempre outro e outro, até à morte tudo parar eternamente.

São inúteis os oito caminhos porque seria igual se fossem cinco ou apenas um, porque todos os caminhos nos levam ao abismo e nós mesmos levamos para o abismo os nossos caminhos, porque, abismo dos abismos, tudo é abismo.




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