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A mostrar mensagens de novembro, 2021

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 Escrever este livro da minha vida não é mais do que um modo de tornar digno o meu caminho para a morte que tem como  última etapa a humilhante velhice, pois a velhice não mais do que a caricatura da vida.  Tinha razão Sócrates quando recusou negar-se a si mesmo para salvar a vida. Ser-lhe-ia fácil evitar a morte pedindo clemência ou fugindo, com o aconselhavam os seus amigos, e Sócrates recusou com dignidade e sabedoria, tanto mais que, tendo setenta anos, estando naquele momento da vida em que se aproximava a degradação do corpo e, por consequência, a degradação da alma, degradação que ele não aceitava existir mas cuja existência ele próprio estava a confirmar preferindo a morte com dignidade da alma à morte da alma degradada pela velhice do corpo.  Escolheu a sua própria salvação ao escolher a morte. Toda a vida de Sócrates foi uma preparação para morte através da filosofia e, quando a morte chegou por imposição dos homens, ele preferiu-a à outra morte imposta pel...

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 A entrada na adolescência foi para mim a entrada num labirinto onde eu procurava, desesperadamente, Ariane. Mas Ariane nunca chegava com seu novelo de salvação nem eu matava o Minotauro porque o Minotauro estava dentro de mim. Por isso toda a busca era inútil e cada sala uma derrota. E eu derrotava-me a mim mesmo com as minhas próprias armas, a imaginação e  o desejo. A imaginação oferecia-me amantes impossíveis, o desejo oferecia-me amantes possíveis mas que eu não desejava. Amava rainhas abandonadas, as Soraias deste mundo a quem o abandono e a esterilidade fazia mais belas e mais amadas. Amava mulheres que amavam outro  e que outro amava e, ainda assim, eu perseverava em amar porque amadas por outro me pareciam belas como a lua, mas também como a lua distantes de mim por amarem outro. Amava também as que amavam outro mas que pelo amado eram ignoradas  ou, até, desprezadas, mas que, ainda assim, persistiam nessa humilhante prisão do amor que também  a mim per...

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 O amor é amizade que se tornou angustiada pelo temor da perda e pela premência do desejo. Angustiado, mesmo que não se sinta, o amante perde-se dentro de si mesmo porque se transforma num labirinto à força de se perder pelo outro. Mas essa angústia é vulgar e só deixa de o ser quando se transforma em desespero, porque só a amor desesperado morre pelo amado. Os homens são, quase sempre, simulacros do amor. Em verdade só as mulheres amam porque é feminina a morte, e o amor faz delas um sonho mortal. De todas as mulheres a quem alguma vez disse que amava mas deixei de amar guardo uma amizade longínqua e triste que é a mesma amizade longínqua e triste que guardo para as mulheres a quem não disse que amava mas desejaria ter dito porque por todas sempre sentirei amor. Elas hão de passar, eu hei de passar, eu sei. E ninguém lembrará o amor que eu tive ou que quis ter. Mas o mundo não será o mesmo depois de alguém ter sentido amor porque, com ele, esse alguém fez unir o sol a outras estre...

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Estou na minha aldeia e eu sou a minha aldeia. Estou na minha cidade e eu sou a minha cidade. Estou no mundo e eu sou o mundo. Mas o meu coração não está acertado pelo coração da minha aldeia, nem pelo coração da minha cidade, nem pelo coração do mundo. A minha vida não é uma passagem entre uma rua e outra rua próxima.  Tenho sentimentos, tenho vontades, tenho pensamentos, e isso é a minha aldeia, a minha cidade e o meu mundo tanto como são uma criação da aldeia, da cidade e do mundo. Não consigo abdicar deles como não consigo abdicar de mim mesmo. Não quero ficar apenas no meu quarto a dar sementes de girassol às palavras.  As palavras fechadas no meu quarto seriam corujas aprisionadas. Seriam a areia duma ampulheta: escorrem por um buraco muito estreito e, no fim, fica o vazio. Quero palavras alimentadas pela aldeia, pela cidade e pelo mundo para que, sendo minhas, passam ser também do mundo.

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Tem andado à procura de si mesmo. A princípio, parecia ser tudo muito simples: nascido às tantas horas, no dia tantos, do mês de, do ano de, no lugar de, freguesia de, concelho de, distrito de, filho de e de, neto paterno de e de, neto materno de e de. Mas isso não bastava. Foi uma criança descalça, nadava nos poços profundos atirando-se do muro e subia pelos alcatruzes, apanhava peixes à mão no pequeno rio da sua aldeia, e a mão era ainda mais rápida do que os peixes em fuga. Mas isso não bastava. Subia aos pinheiros mais altos para ver os ninhos dos milhafres, apanhava pássaros com armadilhas. Mas isso não bastava. A morte esperava-o de cada vez que subia aos altos pinheiros, porém a morte para ele ainda não existia. Mas isso não bastava. Foi metido num colégio interno, apesar de tudo uma prisão dourada, pois se não fosse essa prisão a cada dia tinha de cortar erva para o gado e ajudar nos trabalhos da terra. Mas isso não bastava. Em rebelião com o seu mundo não deixava de ser dócil ...

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 Somos seres condenados à ruína, a que as ervas que crescem sob os nossos passos acabem por nos devorar. Perante a ruína inevitável, como pode este ser transitório conceber-se a si próprio? Como pode conviver com a sombra do seu desespero? Compreendendo que a vida do homem sobre a terra é um grito de desesperado, Camilo, Raul Brandão e Pascoais levaram a cabo diferentes combates contra o desespero. Camilo, enfrentou-o com o sarcasmo, o único modo de seres impotentes enfrentarem um Deus diabólico. Raul Brandão abraçou o desespero como se abraça uma nuvem de esperança concedida aos homens por um homem tão humanamente bom que se tornou divino. Pascoais fundiu-se com os montes, com as pedras, com as árvores para nelas encontrar o divino que o salvasse do desespero da humana existência. Caminhando diariamente para o escritório como uma penitência, eu sou esses três no sarcasmo comigo mesmo, no abraçar as nuvens obscuras que são os homens, no regresso à minha infância onde eu fui rio, ár...

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 Devemos morrer primeiro a aprendermos a amar.