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A mostrar mensagens de setembro, 2023

PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

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Era a minha vez de entrar na sacristia. Acabava de sair o Zé Marreta a sorrir e a dizer-me vai-te perguntar se tocas o bicho. Não consegui rir-me porque ia pela primeira vez à confissão e isso era para mim um ato tão grave que abafava qualquer riso. A sacristia era grande ( eram tão pequenos os meus olhos de criança com medo que, para eles, era grande a pequena sacristia da capela da minha aldeia). Em frente da porta de entrada, sobre uma cómoda de madeira escura, estava uma estátua de S. Sebastião ladeada por dois castiçais de lata. O santo erguia-se ao longo do tronco de uma árvore, com os pés atados a esse tronco e os braços atados aos tocos de dois ramos secos, decepados, dessa árvore sem folhas, o braço esquerdo atado de modo a permanecer erguido e o braço direito descaído e atado junto à anca, A cabeça e o peito estavam levemente inclinados para trás, em pose artística, e o rosto exibia uma sensação de dor, na qual, um olhar mais atento poderia descobrir uma sensação de prazer. T...

FLOR E APELES

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Ela queria ser a lua ancorada Ao seu sol Por isso tomou cedo A barca longínqua da morte Vem vem vem Vento da Primavera Vem cisne mais alto que todas as águas D e moraste o peso de um império Demoraste um iceberg disse ele A grande ceifeira levou-te Antes de haver tempo respondeu Antes de haver noite Antes de haver trigo ceifou-te Eras ainda a cabeça rubra Duma papoila Uma constelação que começava A abrir-se Para os anos luz Para abraçar os céus e os mundos O coração das estrelas fugiu dos nossos corpos Mas apesar do tempo Apesar da cinza Estamos juntos E faremos amor na morte. HENRIQUE DÓRIA

VIOLONCELOS

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Águas que ardem nas arcadas Cobras que voam lá no alto Solidões de ruínas e de fadas Tomando os barcos bêbados de assalto Aves que soluçam se debruçam Debicando o coração dos astros Arcos que no passado passam Felizes sob o olhar dos mastros Ai violoncelos que soluçam Caudais de rosas Para o sorvedouro Trémulas e incertas Em ondas que abraçam As urnas quebradas Os sorrisos de ouro HENRIQUE DÓRIA

HÁ EM MIM UM PECADO

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Há em mim um  pecado Que não posso mais guardar E um ror de almas Tigres espadas esfinges Subindo e descendo entre  Dois mundos Mas eu pertenço a outro Não subo nem desço Porque na minha boca com febre Crepita uma palavra O meu pecado Uma palavra insensata Que caminha de noite Para abrir as fontes. Veio de longe a palavra De outras bocas com febre Onde a música do amor envolve  As ideias  E as imagens E as ondas fustigantes Do mar vermelho. HENRIQUE DÓRIA

PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

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 A descida pelo tronco do pinheiro era tão penosa que mais me parecia uma subida a fazer-me tremer os braços e as pernas e dilatar o coração. Mas não era o perigo nem o esforço da descida que  me provocavam o medo. Quando deitei os pés no chão percebi que o que me preocupava verdadeiramente,  logo que começara a subir, e ia crescendo em angústia à medida que descia, não era o perigo - nos meus cinco anos eu não tinha medo da altura dos pinheiros ou da profundidade dos poços. A altura dos pinheiros dominava-a bem dobrando o meu pequeno cinto num oito e, com cada ponta do cinto assim dobrada e encaixada nos pés, com o meio do cinto apoiando-se nas carrascas, eu podia subir aos pinheiros mais altos, que não conseguia abarcar com os braços, com a destreza de um gato. Estava longe de mim o medo porque a minha obsessão  era ver e tocar a ternura da penugem dos pequenos milhafres. Os pais, desesperados, voavam e gritavam perto de mim mas sem se aproximarem muito. Porém, iss...

PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

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  Eu nada conhecia então desse povo estúpido, ignorante e cruel que tinham sido os antigos judeus. Não punha em questão que um Deus qualquer condenasse toda a descendência de Adão ao sofrimento e à morte pelo estranho pecado que este cometera ao comer o fruto de uma árvore que esse mesmo Deus colocara no Paraíso como presente envenenado para o homem que Ele próprio tinha criado e amava como pai, desse Deus criador de todas as coisas visíveis e invisíveis incluindo Satanás, o seu arqui-inimigo, o cancro, a lepra e as hemorroidas com que Ele ameaçava os pobres beduínos que circulavam através dos desertos entre o Líbano e a Arábia para sobreviverem já que aquela terra que fora prometida ao seu antepassado Abraão, ou Ibraim, nascido na fértil Caldeia filho de um oleiro, e que, não se sabe por que desígnio, percorrera dois mil quilómetros para essa terra onde Deus lhe tinha dito que corria leite e mel, mas que era, afinal, uma terra onde só abundavam as pedras e estas nada permitiam que...