PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER
Era a minha vez de entrar na sacristia. Acabava de sair o Zé Marreta a sorrir e a dizer-me vai-te perguntar se tocas o bicho. Não consegui rir-me porque ia pela primeira vez à confissão e isso era para mim um ato tão grave que abafava qualquer riso. A sacristia era grande ( eram tão pequenos os meus olhos de criança com medo que, para eles, era grande a pequena sacristia da capela da minha aldeia). Em frente da porta de entrada, sobre uma cómoda de madeira escura, estava uma estátua de S. Sebastião ladeada por dois castiçais de lata. O santo erguia-se ao longo do tronco de uma árvore, com os pés atados a esse tronco e os braços atados aos tocos de dois ramos secos, decepados, dessa árvore sem folhas, o braço esquerdo atado de modo a permanecer erguido e o braço direito descaído e atado junto à anca, A cabeça e o peito estavam levemente inclinados para trás, em pose artística, e o rosto exibia uma sensação de dor, na qual, um olhar mais atento poderia descobrir uma sensação de prazer. Trespassavam-no três setas, uma sobre o coração, outra do lado direito, logo abaixo do tórax, e uma terceira na coxa esquerda. Sob as setas escorriam manchas de sangue, de modo a que quem entrasse naquela sacristia percebesse que a religião era castigo e sofrimento, e que a única fuga ao pecado a que todos estavam condenados era a entrega dos nossos segredos mais íntimos ao senhor padre.
Pedi licença para entrar, foi-me concedida. Cheio de medo entrei e ajoelhei-me sobre a almofada vermelha, já puída, do genuflexório. Ao centro deste havia um crucifixo exibindo Cristo em agonia. O meu rosto ficava voltado para uma seteira por onde entrava um raio de luz em que dançavam minúsculos grãos de pó. Coloquei as mãos unidas sobre o genuflexório, em gesto de perdão. O padre António, sentado numa cadeira ao lado do genuflexório, com os lábios bem perto da minha orelha direita, disse-me então.
- Confessa os teus pecados meu menino.
Fiquei mudo de medo, e não consegui balbuciar uma só palavra. Mas ele avançou com a pergunta sacramental: tu tocas-te? Impulsionado
pela pergunta respondi que sim.
- Muitas vezes?
-Sim
-Todos os dias?
-Sim
- Isso é uma grande pecado meu menino. Por esse pecado mortal Deus castigou Onan. E esse pecado vai fazer muito mal ao teu coração, se continuares. Não deves continuar a cometer esse pecado. Arrependes-te dele?
- Sim, arrependo, senhor padre. Mas eu acordo todos os dias com o coiso teso, não tenho culpa. Tocar nele é a única maneira de ele deixar de ficar teso.
-Não podes fazer isso. Se acordares com o coiso teso vais logo fazer chichi que isso passa.
- Faço chichi e não passa senhor padre.
- Então despejas uma caneca de água fria por cima dele.
- Está bem senhor padre. Vou fazer isso. Não vou pecar mais.
( continua).
HENRIQUE DÓRIA
Comentários
Enviar um comentário