PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

 Eu nada conhecia então desse povo estúpido, ignorante e cruel que tinham sido os antigos judeus. Não punha em questão que um Deus qualquer condenasse toda a descendência de Adão ao sofrimento e à morte pelo estranho pecado que este cometera ao comer o fruto de uma árvore que esse mesmo Deus colocara no Paraíso como presente envenenado para o homem que Ele próprio tinha criado e amava como pai, desse Deus criador de todas as coisas visíveis e invisíveis incluindo Satanás, o seu arqui-inimigo, o cancro, a lepra e as hemorroidas com que Ele ameaçava os pobres beduínos que circulavam através dos desertos entre o Líbano e a Arábia para sobreviverem já que aquela terra que fora prometida ao seu antepassado Abraão, ou Ibraim, nascido na fértil Caldeia filho de um oleiro, e que, não se sabe por que desígnio, percorrera dois mil quilómetros para essa terra onde Deus lhe tinha dito que corria leite e mel, mas que era, afinal, uma terra onde só abundavam as pedras e estas nada permitiam que entre elas crescesse a não ser cardos. Também não punha em causa que o próprio Deus, ou uma parte Dele que, apesar de ser parte, era, como Ele,  também infinita, viesse à terra por meio de uma virgem fecundada por uma pomba ( o mito de Leda e o Cisne é muito mais interessante por ser muito mais humano e, por isso, muito mais verdadeiro), que se fizesse homem e fosse escarnecido, torturado e crucificado para salvar todos os homens, mesmo os que nunca ouviram falar dele, do pecado e da morte, em vez de simplesmente perdoar aquele ridículo pecadilho, de que não tinham qualquer culpa, e os colocar novamente no Paraíso fazendo-os viver felizes e eternos em vez de os castigar por esse pecadilho que não cometeram e, como se isso não bastasse, sacrificar o seu único filho unigénito para os salvar desse pecadilho.

Eu acreditava, como todas as crianças da minha aldeia, nas histórias que nos ensinava o padre António na catequese, incluindo que o Titanic se tinha afundado levando para a morte  mais de dois mil desgraçados humanos por um castigo de Deus pela arrogância dos seus construtores que, num golpe publicitário, afirmaram para os jornais que nem Deus o conseguiria afundar. Eram bonitas e muito coloridas as imagens do catecismo. O padre António era de estatura meã, tinha um rosto redondo que nos dava serenidade e fechava os olhos, por momentos, quando nos dava conselhos edificantes como se quisesse envolver-nos com um abraço paternal, por isso eu só poderia acreditar no que me ensinava sem alguma vez pensar sequer em questionar-me e, muito menos, em questioná-lo. É certo que, entre sorrisos, eu ouvia dizer aos adultos que, depois da Páscoa, recolhidas as côngruas, ele  se concedia umas férias e ia para Espanha acompanhado de uma bela Irene. Mas isso transcendia o meu entendimento tanto como era transcendente o sorriso do padre António para as criancinhas.

(continua)

HENRIQUE DÓRIA



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