PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER
A descida pelo tronco do pinheiro era tão penosa que mais me parecia uma subida a fazer-me tremer os braços e as pernas e dilatar o coração. Mas não era o perigo nem o esforço da descida que me provocavam o medo. Quando deitei os pés no chão percebi que o que me preocupava verdadeiramente, logo que começara a subir, e ia crescendo em angústia à medida que descia, não era o perigo - nos meus cinco anos eu não tinha medo da altura dos pinheiros ou da profundidade dos poços. A altura dos pinheiros dominava-a bem dobrando o meu pequeno cinto num oito e, com cada ponta do cinto assim dobrada e encaixada nos pés, com o meio do cinto apoiando-se nas carrascas, eu podia subir aos pinheiros mais altos, que não conseguia abarcar com os braços, com a destreza de um gato. Estava longe de mim o medo porque a minha obsessão era ver e tocar a ternura da penugem dos pequenos milhafres. Os pais, desesperados, voavam e gritavam perto de mim mas sem se aproximarem muito. Porém, isso era-me indiferente - não tinha medo das suas bicadas para defenderem os filhotes, e a minha felicidade fazia-me ignorar a sua angústia. Ver e tocar a sua penugem era ver e tocar a ternura do mundo na sua pequena ternura, ver e tocar toda a beleza do mundo na sua breve beleza.
Sabia o que me esperava quando chegasse a casa com as calças rotas entre as pernas e a camisa cheia de resina. Não eram com o meu cinto as cinturadas que apanhava, eram com o cinto a sério do meu pai, largo e duro, que faziam com que o meu traseiro se tornasse um emaranhado de estradas vermelhas que, enquanto durasse a dor que sentia ao sentar-me, me afastava da vertigem dos ninhos dos milhafres.
Felizmente, tinha os poços. A sua água apressava a cura das estradas vermelhas: a ternura e a beleza das suas águas eram semelhantes à ternura e à beleza dos pequenos milhafres; o prazer da escalada dos alcatruzes para um novo mergulho era igual ao prazer da escalada dos pinheiros altos e grossos onde os milhafres faziam o seu ninho. A água que me lavava o corpo lavava também a minha alma fazendo com que aparecesse em casa feliz e sem medo. E não sentia, no alto da noite, cada um dos grandes milhafres, macho e fêmea, que eu angustiara de dia, entrarem pelos meus olhos e debicarem com raiva o meu cérebro de criança.
(continua)
Henrique Dória
O eu poético pueril medroso perante a descoberta da adversidade e ,resistente vence a frustração e cresce como criança e poeta .💙
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