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A mostrar mensagens de julho, 2023

PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

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  - E apanhavas muitos pássaros com as armadilhas? - Muitos. Mesmo muitos. Melros, tentilhões, rouxinóis, até pardais. Os pardais eram os mais difíceis de apanhar. Muito espertos. Duvidavam de tudo. Até do bicho parado que ali estava tão fácil de comer. Preferiam os bichos vivos que tentavam fugir para os buracos. - E não sentias remorsos? - Sinto-os agora. Muitos. Por agora e pelos que não senti então. -Por  que não sentias remorsos matando pássaros tão pequenos, tão livres e tão lindos? - Porque adorava comê-los. Então, eu, o Natalino ou o Zé Pataco compartilhava-mos os pássaros que os nossos costelos tinham apanhado. Depenávamo-los, estripávamo-los, lavávamo-los e púnhamo-los a fritar. Púnhamos-lhe colorau para ficarem mais saborosos e mais bonitos. Era uma comunhão feliz com pássaros rosados que devorávamos com as nossas mãos besuntadas de gordura. As hóstias brancas que comíamos na igreja com solenidade triste, dadas pelas mãos limpas do padre Manuel, engolíamo-las  ...

PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

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 Se não posso já regressar ao passado, ao meu paraíso perdido, essa perda é também permanência, a lembrança que me há de separar sempre do futuro. Olho a mala onde colocaram o indispensável para que eu pudesse viver nesse lugar onde poderia iniciar o caminho para, um dia, ser "alguém". Nunca se quiseram desfazer dela os que fizeram o sacrifício de a comprar e de a encher: três mudas de lençóis, três cobertores, três colchas, três pijamas, três camisolas, três calças, três casacos, sete camisolas interiores, sete cuecas, sete pares de meias e sete camisas. Sentia-me um noivo com esse enxoval, um noivo que se poderia vestir de luto porque era então que a minha liberdade iria começar a morrer. Comovo-me com essa mala de losangos verdes já desbotados sobre um fundo negro estampados no latão que envolvia a madeira forrada por dentro com papel rosa sobre o qual pareciam chorar pequenas flores de lis azuis. Ela ainda ali está, a um canto, no rés do chão da casa de meus pais, dessa c...

PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

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 Em verdade, sou prisioneiro de um passado que perdi e já não posso voltar a ter e de um futuro que nunca terei. Permanece dentro de mim a criança que fui com os pés mergulhados na terra, aquele mundo de poços e de pássaros, de bois e de erva, de videiras e mosto, de flores e de estrume, de carros com rodas de metal rangendo sobre as ruas ou atolados na lama, de noras e infinitos passos em volta, de mãos e de frutos, aquele mundo que foi para mim o paraíso embora fosse tudo menos o paraíso, um mundo andrajoso e doente, de fugas e de mortes precoces, de coisas que não passavam e onde nada se passava, onde haviam de chegar as guerras longínquas mas sempre perto de nós porque perto de nós eram os funerais calados, os discursos ridículos e febris, os aerogramas e pobres mensagens de saudade com tristeza e medo ao fundo, um mundo a preto e branco, mas eu tinha quatro, cinco, seis anos e estava então perpetuamente embriagado de todas as cores, e olhava o mundo, as pessoas, as palavras e ...

A AURORA, de PAUL DELVAUX.

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  Esta obra é o assumir de uma contradição. Intitula-se A AURORA. E se a aurora da vida está presente nas mulheres e nos homens que figuram no quadro, o negro que cobre o chão onde caminham e a árvore e o céu escuro que cobrem as suas cabeças, assim como as vestes do jovem que caminha em direção ao espetador, recordam que a morte está sempre presente sob os nossos pés e sobre as nossas cabeças. Porém, apesar dessa contradição, a obra mostra-nos o triunfo da esperança: as linhas de força do quadro são três linhas verticais, aproximando DELVAUX de VELASQUEZ, que usou estas linhas de força em duas das suas maiores obras, AS MENINAS e A RENDIÇÃO DE BREDA. E essas três linhas verticais assentam no jovem e nas jovens nuas que são a mensagem da obra: o mistério da vida e da beleza é maior que o mistério da morte. Gosto Comentar Partilhar