PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER
Em verdade, sou prisioneiro de um passado que perdi e já não posso voltar a ter e de um futuro que nunca terei. Permanece dentro de mim a criança que fui com os pés mergulhados na terra, aquele mundo de poços e de pássaros, de bois e de erva, de videiras e mosto, de flores e de estrume, de carros com rodas de metal rangendo sobre as ruas ou atolados na lama, de noras e infinitos passos em volta, de mãos e de frutos, aquele mundo que foi para mim o paraíso embora fosse tudo menos o paraíso, um mundo andrajoso e doente, de fugas e de mortes precoces, de coisas que não passavam e onde nada se passava, onde haviam de chegar as guerras longínquas mas sempre perto de nós porque perto de nós eram os funerais calados, os discursos ridículos e febris, os aerogramas e pobres mensagens de saudade com tristeza e medo ao fundo, um mundo a preto e branco, mas eu tinha quatro, cinco, seis anos e estava então perpetuamente embriagado de todas as cores, e olhava o mundo, as pessoas, as palavras e as coisas com uma imaginação inflamada e livre que o tempo e o entendimento só poderiam fazer-me perder, porque o tempo cobriu-me com sucessivos mantos de realidade, com sucessivas metamorfoses em que fui mudando a minha pele e o meu sangue, transformando-se isso num hábito que me permitiu escapar ao tédio e ao suicídio e vencer, assim, o próprio tempo.
Porém, esse triunfo é a minha própria derrota porque se o passado deixou de existir e o mergulho no futuro ainda não aconteceu, a verdade é que o passado ocupa em mim o espaço de uma rosa eterna que é também uma ferida incurável, ambas persistentes no fundo de todas as metamorfoses e contra todas as metamorfoses.
Então, todo o entendimento que adquiri não passa da consciência terrível da minha derrota e do meu exílio num mundo que eu tento, em vão, explicar.
HENRIQUE DÓRIA
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