PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

 Se não posso já regressar ao passado, ao meu paraíso perdido, essa perda é também permanência, a lembrança que me há de separar sempre do futuro.

Olho a mala onde colocaram o indispensável para que eu pudesse viver nesse lugar onde poderia iniciar o caminho para, um dia, ser "alguém". Nunca se quiseram desfazer dela os que fizeram o sacrifício de a comprar e de a encher: três mudas de lençóis, três cobertores, três colchas, três pijamas, três camisolas, três calças, três casacos, sete camisolas interiores, sete cuecas, sete pares de meias e sete camisas. Sentia-me um noivo com esse enxoval, um noivo que se poderia vestir de luto porque era então que a minha liberdade iria começar a morrer.

Comovo-me com essa mala de losangos verdes já desbotados sobre um fundo negro estampados no latão que envolvia a madeira forrada por dentro com papel rosa sobre o qual pareciam chorar pequenas flores de lis azuis. Ela ainda ali está, a um canto, no rés do chão da casa de meus pais, dessa casa que há de ser minha porque é lá que guardo o meu passado. Depois que a minha mãe sofreu o castigo desse Deus que ela tanto venera de ficar prisioneira de uma cadeira de rodas, os meus pais mudaram-se para o rés do chão, e eu comecei a adaptar o primeiro andar às necessidades dos meus filhos, que nunca conheceram o sabor da terra e da liberdade porque nasceram de um pai que  cumpriu as esperanças que nele foram depositadas e recompensou todos os sacrifícios que por ele fizeram os modestos lavradores que tanto queriam que o seu filho fosse "alguém".

A mãe já não vai trabalhar para os campos, o único lugar onde se sentia livre e feliz. O pai ainda  força os noventa e três anos com o trabalho. Nas vinhas ainda consegue fazer prodígios com o velho trator  Ferrari e o reboque. Ainda faz a sua horta  com couve, tomate, alface e feijão verde. Mas reduziu o espaço à sua volta que outros começam agora a ocupar. Não demorarão muitos anos até que o rés do chão que agora ocupam esteja vazio, tão vazio como o tempo que eles atravessaram. Mas esse rés do chão dos seus últimos anos, toda aquela casa, a adega, a casa do forno, a destilaria, o pátio, os currais, os caminhos que percorreram até às vinhas que cuidavam com saber e carinho, os pinheiros, os eucaliptos, a terra que calcaram estarão cheios de recordações porque há uma memória muda em todas as coisas em que um dia tocaram com amor, prazer e sofrimento, e essa memória não se apaga com o tempo mas, tão só, com a morte.

(continua) 

Henrique Dória




Comentários

Mensagens populares deste blogue

CANÇÃO DE ORFEU PARA EURÍDICE

ESPLENDOR NA RELVA

QUANDO DEUS CRIOU O TEMPO