PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

 - E apanhavas muitos pássaros com as armadilhas?

- Muitos. Mesmo muitos. Melros, tentilhões, rouxinóis, até pardais. Os pardais eram os mais difíceis de apanhar. Muito espertos. Duvidavam de tudo. Até do bicho parado que ali estava tão fácil de comer. Preferiam os bichos vivos que tentavam fugir para os buracos.

- E não sentias remorsos?

- Sinto-os agora. Muitos. Por agora e pelos que não senti então.

-Por que não sentias remorsos matando pássaros tão pequenos, tão livres e tão lindos?

- Porque adorava comê-los. Então, eu, o Natalino ou o Zé Pataco compartilhava-mos os pássaros que os nossos costelos tinham apanhado. Depenávamo-los, estripávamo-los, lavávamo-los e púnhamo-los a fritar. Púnhamos-lhe colorau para ficarem mais saborosos e mais bonitos. Era uma comunhão feliz com pássaros rosados que devorávamos com as nossas mãos besuntadas de gordura. As hóstias brancas que comíamos na igreja com solenidade triste, dadas pelas mãos limpas do padre Manuel, engolíamo-las  porque tínhamos medo. O padre, os pais, os avós, todos diziam que se não o fizéssemos, se não nos confessássemos e comungássemos, iríamos parar ao inferno. Embora fôssemos crianças estávamos cheios de pecados.

-Comiam os passarinhos com alegria e sem remorsos?

-Por que haveríamos de os ter? Não há remorsos na natureza. Na natureza não há crime nem pecado. E, então, eu era apenas natureza.




Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

CANÇÃO DE ORFEU PARA EURÍDICE

ESPLENDOR NA RELVA

QUANDO DEUS CRIOU O TEMPO