PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

     Vão é o combate  que travo comigo mesmo porque sempre serei eu o vencido, e só  a lembrança do paraíso perdido me faz erguer de novo para continuar a lutar por uma nova derrota. Espero e não espero enquanto o meu futuro derrota sempre o meu passado. Em verdade, sou prisioneiro de um passado que perdi e já não posso ter e de um futuro que nunca terei. Permanece em mim a criança com os pés nus sobre a terra. Esse mundo de árvores, de poços e de pássaros, de bois e de erva, de videiras e de mosto, de flores e de estrume, de carros com rodas de metal rangendo sobre as ruas, de noras e infinitos passos em volta, de mãos e de frutos, de alegria na sombra permanente do perigo,  era, para mim, o paraíso perdido, embora um mundo de andrajos e doenças, de fugas noturnas e mortes precoces, de coisas que não passavam e onde nada se passava, de guerras longínquas mas sempre perto de nós, de discursos ridículos e febris, aerogramas e pobres mensagens de saudade, tristeza e medo num écran a preto e branco,  de jovens mulheres viúvas ou de soldados que regressavam em festa era o mundo de então. Mas eu olhava o mundo, as pessoas, as palavras e as coisas com uma imaginação inflamada e livre que o tempo e o entendimento só poderiam fazer-me perder porque o tempo cobre os paraísos com sucessivos mantos de realidade que envolvem as sucessivas metamorfoses com que se vai transformando a nossa vida, mudando a nossa pele e o nosso sangue, sendo isso que nos permite escapar ao tédio e à vertigem do suicídio  e vencermos, assim, o tempo. Porém esse tempo é a nossa própria derrota, porque o passado deixa, então, de existir e ainda não aconteceu o mergulho no futuro. E que dizer do minha lucidez senão que é a consciência da minha derrota e do meu exílio? Em verdade, o passado ocupa um espaço dentro de mim que é a minha marca de fogo que persiste em todas as metamorfoses e contra todas as metamorfoses, e essa marca é o sinal da minha perda e da minha permanência.

Quantas contradições, quantas desilusões!

HENRIQUE DÓRIA



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