PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER
Segui, então, o meu destino, que era o destino que me davam os que me amavam e que eu amava, sem alguma vez ter posto em causa o que estavam a dar-me porque sabia que davam por amor, e não há nada que nos faça mais complacentes do que o amor que alguém nos dá.
Sou hoje pensamento e palavras e isso é ser o "alguém" que me deram as cordas do amor. Mas possuo ainda este corpo, todo sensações, todo saudade, todo volúpia de um tempo onde não mais brincarei, um tempo que é, hoje, apenas lembrança daquilo que não cheguei a ser mas ainda sou, serei sempre, até à morte. Na minha memória estão, estarão sempre esses peixes que eu apanhava com as mãos no rio da minha aldeia, e eu segurava vendo-os debater-se com a morte, para os largar por instantes e os apanhar novamente no jogo voluptuoso da minha crueldade infantil.
Hoje, sou apenas esse peixe desesperado debatendo-se nas minhas próprias mãos. Hoje, todo esse tempo é apenas imagens, sensações perdidas e tornadas pensamentos que se atropelam nesse ser dividido que agora sou, pobre almita, porque se as sensações faziam de mim um ser corajoso e feliz, o pensamento faz de mim um ser temeroso e triste, e toda a riqueza interior que ele me dá é apenas a consciência profunda da minha fragilidade e da verdade do Caos que é tudo.
Se ao menos tivesse Deus como último recurso, talvez alcançasse nas mãos de Deus a serenidade dos que sabem que vão morrer mas estão cheios da esperança de uma serenidade perpétua. Mas o pensamento afastou de mim a possibilidade de Deus, e fez de mim este ser dividido que, por isso, nunca logrará ser ele mesmo porque todos os seres divididos estão condenados e viver exilados tristes sobre a terra.
HENRIQUE DÓRIA
Comentários
Enviar um comentário