PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

 Há momentos da minha vida em que não me reconheço a mim mesmo e outros em que me vejo com nitidez num passado a que não mais conseguirei regressar. Cedo me levaram da terra de meus pais para fazerem de mim "alguém", como dizia o meu avô. Diziam ser esta a razão da minha levada mas sei, agora, que a verdadeira razão do meu exílio, era outra, e terrível: a morte.

Quase todos os dias de Primavera chegava a casa com as calças rotas por subir aos pinheiros para ver e tocar as bolas de penugem dos pequenos milhafres, dos corvos, das pegas e dos pica paus.

No Verão lançava-me à água dos poços de rega e subia pelos alcatruzes para voltar a lançar-me ou ia nadar para a preza da Ribeira, sempre louco de liberdade e volúpia. 

Deambulava pelos pinhais, esmagava nas mãos o rosmaninho para passar pelas faces o seu perfume, apanhava míscaros, deitava-me sobre o musgo a ver o sol coado entre os ramos dos pinheiros, ia para os ribeiros apanhar peixes com as mãos - as minha mãos eram, então, mais rápidas que os peixes.

Não sabia o que era o medo, nem a morte e de nada valia o meu pai ameaçar-me de me cortar em dois.

Derrotado, e não conseguindo cortar-me em dois apesar das constantes ameaças, o meu pai decidiu meter-me num colégio interno. Aprisionando-me longe de casa, livrava-me da morte e fazia de mim "alguém".

Cumpriu-se o seu desejo: fez de mim "alguém" e, por isso, estou aqui a debater-me e fazer-vos debater com palavras só concedidas a quem é "alguém". E também escapei da morte precoce na queda de um velho pinheiro ou nas águas profundas de um poço de rega. Mas se a morte é a condição da vida, tive algumas vezes a esperança que este ser "alguém", que estas palavras consigam adiar por algum tempo o destino da vida e o meu destino que poderia ter-se cumprido logo na minha  mais remota infância. E isso é uma breve volúpia que me dá a ilusão de que nem tudo na minha vida foi perdido.

HENRIQUE DÓRIA



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