ETERNIDADE
Não há maior desejo que o desejo de eternidade. É esse desejo que move os verdadeiros artistas, os verdadeiros escritores que tudo aceitam sacrificar por essa grande ilusão. A família desprezada pela sua obsessão de beleza sofre ou abandona-os. Os amigos chamam-lhes loucos, embora alguns os admirem. A solidão que era uma necessidade para perseguirem a beleza torna-se um vício. E se é verdade que o homem não pode conceber-se a si próprio sem o outro, é na solidão que eles alcançam o sentido da vida e a felicidade.
Mas esse desejo de eternidade, ainda assim, não é mais forte neles do que nos santos que, em vez da busca da beleza, procuravam alcançar a eternidade salvando a alma através da degradação do corpo. Uns praticavam o jejum, outros aplicavam em si mesmos instrumentos de tortura, uns flagelavam-se outros faziam-se flagelar. Nestes talvez fosse difícil distinguir a dor do prazer do corpo, mas o que persistiu na lenda foi o sacrifício do corpo que tornava mais puro e mais grandioso o prazer da alma que, assim, mostrava a Deus o imenso amor do seu filho.
O místico Orígenes, querendo anular o supremo prazer do corpo, seguiu à risca o conselho de Mateus que exaltava os eunucos dizendo e existem eunucos que se castraram a si próprios por causa do reino dos céus. Quem conseguir lugar para isto, que faça. Orígenes castrou-se a si próprio no que não foi compreendido nem aceite pelos contemporâneos que o marginalizaram da sua Igreja, nem pela posteridade que, por causa da autocastração, não o santificou, apesar de seguir apenas o conselho de outro santo evangelista.
Mas houve outros que não sabemos dizer se eram loucos de amor ou crentes de uma inocente ilusão ou, ainda, numa hipótese cínica , se eram simples mercadores que compravam a eternidade da alma com o sacrifício do corpo que Deus lhes dera. Esses eram os estilitas, capazes de passar trinta e sete anos sobre uma coluna, como o conseguiu Simão, o Velho. Subiam para uma plataforma no cimo da coluna e aí permaneciam enfrentando tudo, desde a fome, à sede, às chagas e às intempéries.
Claro que há necessidades de que o corpo não consegue prescindir por muito tempo: beber, comer, urinar, defecar. Mas tudo isso pode ser feito do alto de uma coluna. A água e a comida podem ser erguidas numa cesta puxada por uma corda para o cimo da coluna, e urinar e defecar podem daí, também, ser lançadas para a terra. Acumulavam-se as fezes em volta da coluna durante dezenas de anos? Não. Gentes piedosas e cheias de fé, querendo ter na sua posse algo que tivesse pertencido a um homem santo, recolhiam e guardavam as fezes num relicário, porque até as fezes de um santo são santas e podem obrar milagres.
(continua)
HENRIQUE DÓRIA
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