ETERNIDADE (continuação)

 Vinham de todo o império homens do povo, nobres, reis, imperadores, atraídos por verem e terem a palavra sábia  de um santo e os seus conselhos, e nenhumas fezes se acumulavam à volta da coluna do estilita. A todos atendia, dava os seus piedosos conselhos e transmitia a sua fé. Só não queria que se aproximassem dele as mulheres. Elas tinham sido a causa do pecado original, por elas toda a humanidade tinha de expiar na dor esse primeiro pecado, por culpa sua o bom Deus teve de enviar o Seu próprio Filho e fazê-lo padecer, ser crucificado e conhecer a morte. A mulher era a fonte de todo o pecado e de todo o sofrimento. Por isso não as queria perto de si o estilita. 

Ou, talvez, não fosse por isso, talvez fosse porque a força que o fazia suportar tão grandes sacrifícios para expiação dos pecados seus e dos homens não fosse tão forte que fosse capaz de resistir à beleza e ao desejo de uma mulher, pois sabia ele, na sua imensa sabedoria, que a força da carne é maior do que dizem as escrituras.

Mas, um dia, à hora em que o sol acabava de se esconder e tingia o céu de sangue, surgiu do nada, sem que ele se  tivesse apercebido, sem um ruído ou um simples sopro do vento, uma figura que, à primeira vista, lhe pareceu um homem mas, depois, num olhar de espanto mais atento, percebeu ser uma mulher, de rosto duro, largo e e esquálido, olhos iguais a poços profundos, queixo lançado em desafio para a frente, coberta por um manto branco imaculado na parte superior do tronco e na cabeça, e azul cobalto sujo da cintura até aos joelhos, deixando descoberta a metade inferior das pernas, dolorosamente  magras e musculadas, e dos braços que erguiam umas mãos ameaçadoras quais garras de um tigre. uma segurando um cajado, outra agarrando o ramo de uma árvore ressequida.

E alma do estilita, tão cheia da força que lhe era dada pela fé em Deus e pelo sacrifício, tremeu pela primeira vez imaginando que  aquele espetro seria o próprio Satanás, e não resistiu a perguntar:

- Quem és tu?

- Nada e ninguém, respondeu-lhe o espetro.

(continua)

HENRIQUE DÓRIA








Comentários

  1. Niilismo aterrorizante e perfeitamente alegorizado na personagem feminina com o cajado.

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