A CASA ABANDONADA

Se entrar ficarei com o coração partido e não conseguirei conter as lágrimas. Mas se não entrar o meu coração ficará também partido e as lágrimas serão mais dolorosas porque serão apenas por dentro. Olho as glicínias à entrada. Há quantos anos não são podadas nem regadas! Mas persistem em viver. Olho o amarelo torrado da frontaria e o vermelho da porta da sala. Ainda persistem na minha memória, embora estejam transformadas em sombras. Ao lado, o grande portão de entrada no pátio resiste a apodrecer ainda que os adobes em volta mostrem a sua nudez triste. No chão jaz o esqueleto de uma bicicleta. O telhado vai-se afundando, contorcendo-se com uma dor insidiosa e lenta. Não sei como sobrevivo a tanta ausência, a tanta perda de luz e de ternura. Porém, tenho de sobreviver. Não houve nenhuma guerra, nenhum terramoto, nenhuma batalha. Apenas a vagarosa foice da ceifeira do tempo, enquanto a avó acendia o lume e colocava a carne a cozer na panela de ferro com três pés e o avô, enxada cansada, acariciava o mistério tão próximo e tão distante do gato estendido no seu colo. Sinto, ao longe, o cheiro do vinho a fermentar, o odor quente do bagaço queimado, o sabor do bacalhau, das batatas, das cebolas e dos pimentos metidos em espetos de ferro e assados na fornalha da destilaria, o azeite quente, os risos comendo todos da grande travessa. Na velha casa dos meus avós o celeiro ao lado desmoronou-se. As trancas jazem, no chão, apodrecidas. As fechaduras roídas pelo vento já de nada valem. Entrar seria fácil. Entrar é já impossível.

HENRIQUE DÓRIA



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