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A mostrar mensagens de dezembro, 2023

A MINHA VARANDA

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Debruço-me na minha varanda e, embora sentindo-me em casa, sinto que o meu corpo está ali prestes a partir. Dizendo de outro modo: sinto-me ao mesmo tempo na casa e no mundo. Um passo em frente e estarei no jardim das plantas. Um passo à esquerda e estarei na Praça da Vitória, onde, sobre uma coluna vertiginosa moldada em granito, o leão vence a águia vingando as crianças e as mães que, prestes a afogarem-se no rio pelo desabar das barcas, gritam através do bronze. Volto-me para a direita e sinto-me viajando através do mar, ao lado dos navios e dos veleiros que, como eu, se dirigem para o horizonte azul onde vagueiam as aves, breves nuvens brancas junto ao velo de ouro que uma mão segura sobre a cabeça de uma mulher suavemente inclinada para a esquerda, uma mulher que canta nua de costas voltadas para quem, como eu, a deseja. No mar há uma larga avenida negra ladeada por árvores flamejantes, e eu caminho sobre ela mas não consigo sair do mesmo lugar, sempre distante dessa mulher lumino...

DOU UM NOME ÀS ÁRVORES

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Dou um nome às árvores Do meu quintal Como dou aos cães Que mijam nos seus troncos Ou aos gatos que as trepam Para fugirem dos cães E repousarem nos seus ramos Ou aos melros desavergonhados Que me roubam os seus frutos Depois de cagarem nos meus espantalhos. Porque como eu elas são Admiráveis seres viventes Porque as suas raízes acariciam Os seios da terra De que elas são esfinges guardadoras Porque as suas folhas falam A linguagem do céu Porque elas são rasgões luminosos No fundo negro do Nada Porque elas são os meus sonhos felizes O meu rosto voltado para o sol nascente. HENRIQUE DÓRIA

7 FRAGMENTOS NOTURNOS

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  Acima de tudo, Ulisses queria preservar a sua dignidade, porque a sua história mente muito mais do que ele.                                             __________ Que culpa pode haver em nós se temos sonhos?                                             __________ Que sonhos terão um torcionário, um assassino ou um genocida? Certamente apenas pesadelos que os impelem ao crime.                                             __________ Como poderemos ter sido feitos à imagem e semelhança de Deus se Ele está sempre e em toda a parte e nós somos tão limitados no tempo e no espaço?      ...

O MUNDO A VIDA OS FARÓIS

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 O mundo a vida os faróis Contam-se em palavras E assim contados Jogam conosco aos dados. Jogamos a palavra amor E sai-nos a palavra morte Jogamos a palavra ternura E sai-nos a palavra vazio Jogamos a palavra esperança E sai-nos a palavra sofrimento. Amor ternura esperança Faróis Nunca serão inteiros Mas um só amor c onsola-nos  De todas as mortes A lembrança De uma mão suave Preenche todos os vazios Um só sonho animal e verde Curará todas as feridas Porque  numa noite se uniram o céu e a terra Para que a improvável vida Os mágicos faróis Aconteçam. HENRIQUE DÓRIA

NINGUÉM SABE O QUE SERÁ

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Ninguém sabe o que será O mundo - morreram já Os que sabiam E os que permanecem Não sabem ainda Apenas sentem Que debaixo de cada pele  Há um mundo E dentro de cada cabeça Há antimundos. Se cortarmos as cabeças Antimundos rolarão Pelas ruas negras Rolarão pelas ruas vermelhas Como bolas de cabelo coalhado. Por tantos antimundos À minha cabeça Move-a a força de um não. HENRIQUE DÓRIA

A CASA ABANDONADA

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Se entrar ficarei com o coração partido e não conseguirei conter as lágrimas. Mas se não entrar o meu coração ficará também partido e as lágrimas serão mais dolorosas porque serão apenas por dentro. Olho as glicínias à entrada. Há quantos anos não são podadas nem regadas! Mas persistem em viver. Olho o amarelo torrado da frontaria e o vermelho da porta da sala. Ainda persistem na minha memória, embora estejam transformadas em sombras. Ao lado, o grande portão de entrada no pátio resiste a apodrecer ainda que os adobes em volta mostrem a sua nudez triste. No chão jaz o esqueleto de uma bicicleta. O telhado vai-se afundando, contorcendo-se com uma dor insidiosa e lenta. Não sei como sobrevivo a tanta ausência, a tanta perda de luz e de ternura. Porém, tenho de sobreviver. Não houve nenhuma guerra, nenhum terramoto, nenhuma batalha. Apenas a vagarosa foice da ceifeira do tempo, enquanto a avó acendia o lume e colocava a carne a cozer na panela de ferro com três pés e o avô, enxada cansada...