PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER
Toda a iniciação se faz com sofrimento e morte, e a morte da minha infância começou com a iniciação como aluno daquele colégio, como aquele que vai ser alimentado pelo leite do saber que substituirá o leite materno. Tinha três momentos essa cerimónia de iniciação: o toco, o tojo e o batismo.
A estrada de paralelos de granito que passava frente ao colégio estava rodeada de plátanos antigos - ainda há pouco revi esses mesmos plátanos que continuam a vitalidade de outrora - e a iniciação começava com a árvore dos sonhos, a árvore de Helena de Tróia, a árvore sob a qual foram a qual foram colocadas as estátuas de Sócrates e Platão. Essa árvore servia agora para esmagar a virilidade do iniciado na primeira viagem. Quatro colegas mais velhos pegaram-me cada um, num braço e numa perna. Abrindo-me as pernas e fazendo de mim um ariete, lançaram-me três vezes contra o tronco do plátano para contra ele esmagarem a minha virilidade. De nada valia espernear, insultar, gritar pelas dores sofridas nos testículos. Três era o número de vezes que tinha de padecer para me ser cortada a força da terra e me iniciar na sabedoria do céu sob os auspícios da árvore da beleza.
Rodeado de pinhais, o colégio situava-se no lugar ideal para a segunda viagem de iniciação. Suspenso nos braços daqueles quatro colegas mais velhos, fui levado para o tojo, como era chamada aquela cerimónia de me atirarem para um monte de tojos, esses arbustos permanentemente verdes e de flores amarelas anunciando o fim do Inverno e o início da Primavera, para que os espinhos se cravassem no meu corpo mostrando-me como seria o meu caminho para o saber, para ser esse alguém que aqueles que eu mais amava queriam que eu fosse, a cuja vontade, por amor, eu tinha de obedecer.
Era uma viagem menos dolorosa que a anterior, destinada a dar-me energia, mas essa nova energia, que a cerimónia pretendia que fosse luminosa como a flor do tojo, era destinada a entrar no meu espírito e, aí, só poderia tornar-se em sombra.
A terceira viagem eu iniciava-a já de pé, com dois dos colegas segurando-me os braços e um terceiro segurando-me pelo pescoço, mas restituindo-me um pouco da minha dignidade. Assim era conduzido até uma torneira, onde me era baixada a cabeça para, ser, como fazia o Batista, batizado pela água, esse elemento primordial de que todos somos feitos e e m que se reúnem o céu e a terra. Completava assim as três viagens necessárias para a minha iniciação, para que em mim morresse o passado e começasse a nascer o futuro.
Mas se esse batismo pela água parecia querer dizer-me que eu não teria, a partir de então, quaisquer margens, na verdade eu passaria, então, a criar em meu redor inúmeras margens, como têm aqueles que que, por amor, aceitam que o seu caminho seja escolhido por outros. E essas águas não me davam a força, a grandeza, a alegria e a visão, mas apenas o véu da ilusão. Sobre elas não deslizava o espírito luminoso de Deus, mas angústia sombria da morte.
HENRIQUE DÓRIA
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