PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

- A tua infância é, no teu olhar de hoje, apenas melancolia. O sofrimento encontra-se encoberto por um manto de nevoeiro espesso  e a alegria é uma canção distante - disse ela.

- A alegria não é apenas uma canção, mas uma dança de roda envolvendo uma canção. As raparigas juntavam-se ao domingo no adro da capela da aldeia, giravam em círculo dando os braços em cadeia. A perfeição do círculo completava-se com o enlace amoroso dos braços enquanto elas cantavam:


                    Eu passei por uma terra estranha

                    a pedir esmola  e ninguém m`a deu.

                    Eu hei de deixar escrito

                    à fome ninguém morreu


                    Encadeia meu encadeado

                    não me aperte a mão

                    que me estala o braço

                    encadeia dá-me um beijinho

                    encadeia dá-me um abraço.


E a dança melancólica  continuava com um canto à força da mulher troçando do marialvismo do homem:


                    Tu dizes que me namoras

                    já te andavas a gabar

                    tenho toalha mais limpa

                    se me quiser alimpar.


Porque o domínio dos homens não passa duma ilusão que a liberdade da mulher confirma:


                    Julgavas que eu te queria

                    olha o engano do mundo

                    os meus olhos já navegam

                 em outro poço mais fundo.


Tudo isto me pertence como se fosse eu que tivesse criado aquela canção e aquela dança e tudo só pudesse ter nascido na minha aldeia.

- Acreditas que essa canção nasceu na tua aldeia? Mas essa dança e essa canção canta-se e dança-se  por todo este melancólico país. E não tem apenas uma mas tantas outras letras, uma delas até como grito de revolta e uma consolação contra as injustiças do mundo. Ouve:

                Moro à beira  dos ricos

                tenho pena de ser pobre

                ao mesmo tempo me lembro

                quem é rico também morre.


- Bem sei que a minha aldeia era demasiado pobre e pequena para ter nascido essa canção. Não tinha nem rancho, nem banda de música, nem uma simples tuna. Não tinha sequer quem soubesse tocar acordeão, muito menos o saxofone que eu tanto amava. O meu avô e alguns outros homens  da aldeia tinham andado a aprender clarinete e flauta na banda de música de uma aldeia vizinha. Mas tudo isso terminara, restando do meu avô apenas alguns cadernos com tangos que ele próprio escrevera na sua juventude mas que pareciam esquecidos mesmo para ele quando eu era criança.

Das mulheres não havia memória de alguma ter pertencido a um rancho. Aprenderam as danças de roda vendo e ouvindo os ranchos nas aldeias vizinhas, pois era muito raro vir um rancho à aldeia, porque isso era um luxo insuportável para aqueles pobres camponeses. Mas eu nasci com essa canção. A minha avó cantava-a para me adormecer, e mal aprendi a caminhar aprendi também os movimentos  dos corpos jovens e flexíveis nessa dança. Eu nasci com essa canção de roda, por isso ela nasceu na minha aldeia e pertence-me como as minhas pernas, os meus braços e os meus lábios. 

HENRIQUE DÓRIA








Comentários

  1. Que belas memórias de cantigas populares, um gosto de saudade de aldeia antiga.

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