PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

Sou, hoje, pensamento e palavras, e isso é ser aquele alguém que o nós na corda do amor e este país obscuro fizeram de mim.

E, no entanto, tenho ainda este corpo todo sensações, todo volúpia como quando me lançava aos poços, nadava na água transparente e fria, subia pelos alcatruzes, subia aos pinheiros vertiginosos e amava a triste Soraya abandonada numa Paris cheia de luzes.

Mas tudo isso não passa já de lembrança, de saudade daquilo que já não posso ser mas ainda sou, serei sempre, até à morte.

Queria apanhar, agora, esses instantes como apanhava à mão os peixes velozes do rio da minha aldeia, segurá-los vivos debatendo-se entre os meus dedos, largá-los e voltar a apanhá-los no jogo voluptuoso da minha crueldade infantil. Porém, tudo isso é apenas pensamento, uma das partes desse ser dividido que agora sou, a parte mais pobre porque se o sentimento fazia de mim um ser corajoso e voraz o pensamento faz de mim um ser tímido e triste, porque toda a riqueza interior que ele me deu é apenas a consciência da minha fragilidade e de que a última verdade é a verdade do Caos. Se ao menos tivesse em Deus o meu leito, talvez alcançasse nos Seus braços a minha serenidade. Culpo o pensamento, a riqueza de alma que ele me deu, pelo ser dividido que sou e que, por isso, nunca logrará ser ele mesmo porque todos os seres divididos estão condenados a viver solitários e tristes sobre a terra.

Vão é o combate que travo comigo mesmo porque serei sempre um ser vencido que só a lembrança do paraíso faz erguer de novo para continuar o combate por uma nova derrota. Espero e não espero, enquanto o meu futuro derrota sempre o meu passado.

(continua)

HENRIQUE DÓRIA 



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