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A mostrar mensagens de junho, 2023

DA MASTURBAÇÃO DE UM SOLITÁRIO DEUS

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Da masturbação de um solitário Deus Nasceram as estrelas Das estrelas veio o barro vermelho E deste o corpo dos homens O seu coração e o seu sangue. Por isso o coração vivo È um longo orgasmo Uma estrela cadente Um cântaro voluptuoso Bebendo dentro de si O próprio vinho. E nós gerados no grande leito Da abóbada celeste Entre a noite e o silêncio Nós que aspiramos a ser deuses Possuídos pela obscenidade Nós seres inquietos Nascido dum céu confuso Aspiramos a criar estrelas Num pequeno buraco O único lugar onde não estamos sós. HENRIQUE DÓRIA

PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

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Sou, hoje, pensamento e palavras, e isso é ser aquele alguém que o nós na corda do amor e este país obscuro fizeram de mim. E, no entanto, tenho ainda este corpo todo sensações, todo volúpia como quando me lançava aos poços, nadava na água transparente e fria, subia pelos alcatruzes, subia aos pinheiros vertiginosos e amava a triste Soraya abandonada numa Paris cheia de luzes. Mas tudo isso não passa já de lembrança, de saudade daquilo que já não posso ser mas ainda sou, serei sempre, até à morte. Queria apanhar, agora, esses instantes como apanhava à mão os peixes velozes do rio da minha aldeia, segurá-los vivos debatendo-se entre os meus dedos, largá-los e voltar a apanhá-los no jogo voluptuoso da minha crueldade infantil. Porém, tudo isso é apenas pensamento, uma das partes desse ser dividido que agora sou, a parte mais pobre porque se o sentimento fazia de mim um ser corajoso e voraz o pensamento faz de mim um ser tímido e triste, porque toda a riqueza interior que ele me deu é ap...

PRINCÍPIO DE UM LIVRO POR FAZER

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Há momentos da minha vida em que não me reconheço a mim mesmo, e outros em que me vejo com nitidez mas a que nunca conseguirei regressar. Cedo me levaram de casa de meus pais para, como dizia o meu avô, fazerem de mim alguém. Diziam ser esta a razão da minha levada, mas sei agora que a primeira razão era outra, e mais terrível: a morte. Cumpriu-se o desejo do meu avô: fizeram de mim alguém e, por isso, estou aqui a debater-me com palavras só concedidas a quem é alguém . Escapei também à morte precoce no fundo de um poço para que me atirava nos meus cinco anos  para sentir a volúpia da queda e de nadar, subindo depois pelos alcatruzes da nora para voltar a lançar-me para a água em volúpia muitas vezes repetida, ou de outra morte na queda de um pinheiro antigo e alto a que subira para sentir nas minhas mãos a volúpia da penugem dos pequenos milhafres. Mas se a morte é a nossa condição, talvez este ser alguém , talvez estas palavras consigam adiar por algum tempo essa condição que po...

ELE ERA O VENTO JOVEM

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Ele era o vento jovem E a sua voragem Adorava devorar as flores carnívoras Os seus dedos de moça A sua cabeça incendiada. As palavras suspensas num pêndulo Ele não as ouvia Tinha apenas o corpo  E a sua loucura. Não via o pensamento Nem as imagens Não via a multidão que o olhava Nem as memórias inquinadas Caminhava sobre a areia e a espuma Desejava com sofreguidão de criança Todas as bilhas da terra Água vinho e mel E gritos selvagens Tenazes ardendo sobre a pele Tenazes fazendo ferver A alma. HENRIQUE DÓRIA