POEMA XI - O TORMENTO DE DEUS

Os mortos  não vêm o sangue

Dos vivos

Nem as suas chagas

Ou as suas centelhas

Da pele e da alma.


Para os mortos os vivos

São só

O longo frio da noite

A carne que se irá desfazer

Em sombra

Debaixo da erva.


Deviam colocar estrelas

Nos olhos dos mortos

Para que eles vissem os vivos

A luz a sair-lhes do corpo

Com os corações famintos

A luz erguendo-se do cesto

E da amassadeira

Com a paz e o prodígio

O sinal e a maravilha.


Eles são a grande escuridão

Que não logra encontrar-se

Com outros corpos

Não procuram as portas

Nem entram nem saem

Não contemplam o mar pelas janelas

Nem a árvore na encosta

Nem o cavalo verde na montanha.


Não partem nem regressam

Esqueceram a seda e o perfume

O espelho e a delicadeza

E encerram-se nas estações.´


Apenas se encontram na memória

E descansam em lugar nenhum.

Eles são os véus dos templos

Pesados e taciturnos.


Deuses estrelas onde estais deuses

Que não vindes ao seu encontro

Para os ressuscitar?

Onde estais deuses que vos alimentais

Dos mortos

Que roeis as veias sedentas dos vivos

E ergueis as suas vísceras

Como triunfos?


As vossas facas estão cheias de sangue

O tempo que vós sois

Está cheio de sangue.

Fugis dos mortos que são o vosso espelho

Escondeis-vos dos vivos

Entre nuvens de cinza

Invisíveis

De vós só se vêm

As luvas vermelhas.


Mas nós sabemos que de gelo são

Os vossos olhos glaucos

Que para vós as vidas dos homens

Não valem

A extremidade de um galho.

Terríveis impassíveis

Aportais às ilhas dos mortos

Às sombras dos cedros.

Não morais na terra nem no céu

Apenas nas lápides

Infinitamente mortas

Porque não acordaste nos nossos leitos

Nas manhãs de verão

Tão tonitruantes

Tão impérios que sois.


Deuses vós sois os grandes mortos.

Ah! deixai-nos

Deixai-nos!


Vós alimentais-vos dos mortos

Eles são a vossa ambrósia

Vós sois o fogo e o enxofre

Vós sois o suspiro dos mortos.


Ah! deixai-nos

Deixai-nos!

Nós saberemos estar sós.


HENRIQUE DÓRIA

 






Comentários

Mensagens populares deste blogue

CANÇÃO DE ORFEU PARA EURÍDICE

ESPLENDOR NA RELVA

QUANDO DEUS CRIOU O TEMPO