O NOVO LIVRO DO DESASSOSSEGO

CENA I 

 Dois anões  que se dedicam à nobre tarefa de arrumadores de carros, um de cabeça redonda outro de cabeça cúbica, discutem pela demarcação do seu espaço vital na mesma rua e acabam por se envolver em pancadaria. São incentivados à luta pelo dono do Porsche cuja gorjeta ambos disputavam, e por mirones que se juntaram para presenciarem a discussão e a luta. Só uma mulher tenta apaziguá-los, ao mesmo tempo que invetiva todos os que incentivam a zaragata

- (Mirones simulando o coro da tragédia grega) Não ter armes em santa, menina apaziguadora. A vida é uma luta de anões. Todos somos anões sobre a terra. O que eles fizeram foi com que nos víssemos ao espelho e ríssemos da nossa insignificância e bravata. O grotesco deles está também dentro de nós. Aqueles anões golpeando-se exibiram também o nosso grotesco. Somos seres que se atiram  à luta ignorando que sempre hão de perder mesmo ganhando, ignorando a sua insignificância. Seres ridículos fazendo-se incapazes da compaixão e do amor que, apesar na animalidade, existem dentro de nós.

Não te exaltes conosco. Em verdade somos seres dignos de pena, como esses anões a quem a natureza fez dignos de pena. Por que terão nascido se nasceram para serem objeto de pena e de escárnio, como abortos da natureza. Só um Deus muito malvado poderia ter feito com que nascessem assim - ou uma Natureza sujeita a constantes erros de replicação ao querer preservar-se a ela mesma.

Todos somos uma ilusão que no Nada espera. 

- ( Mulher apaziguadora) Alegrais-vos com a miséria e o ridículo daqueles desgraçados. Sois arrogantes, egoístas e cínicos. O vosso riso é uma riso de hienas que poderá, um dia, ferir-vos a vós e aos que amais. Lembrai-vos de que até as baleias precisam dos peixes mais insignificantes para fazerem a limpeza do seu corpo. Nada somos sem a fraternidade dos outros, e todo o nosso sofrimento vem da falta de amor e de compaixão. Incitando aqueles desgraçados anões à violência sois também a causa e o caminho do seu sofrimento.

- ( Coro dos mirones) Ai Santa Terezinha do Menino Jesus, ora pro nobis. Nunca comeste uma banana  nem pegaste numa pistola, mas bananas e pistolas existem, santinha. 

Ai lírio branco! Ai sabonete de leite de burra perfumado que tornas resplandecente a lua e macia a terra como algodão de açúcar. 

Dona nobis pacem.



 

Comentários

  1. Quantas emoções comiseração a raiva indignação perversão a maldição de que existe no duelo Das forças ternura leveza beleza e feminino ..Gostei 👋

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

CANÇÃO DE ORFEU PARA EURÍDICE

ESPLENDOR NA RELVA

QUANDO DEUS CRIOU O TEMPO