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A mostrar mensagens de fevereiro, 2022

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Com a passagem dos anos, vai crescendo em mim a importância das palavras. Percebo que chegará o tempo em que eu já não serei eu, mas apenas elas, as palavras. E serão elas que falarão por mim. Deixarei um dia de querer olhar-me porque me transformarei em andrajos de mim mesmo. Passarei então os dias a olhar as minha palavras e a conversar com elas como o que resta do meu querer ser. Só elas terão já a dignidade e a beleza que, outrora,  eu acreditei poder alcançar. Está hoje uma manhã luminosa e fresca, e tudo parece leve e quente porque imerso neste frio suave. Serão assim, para mim, as minhas palavras. Não as hei de querer rasgar como Virgílio, mas hei de olhá-las com indulgência e ternura porque, sendo incipientes e ingénuas, são o melhor que restará de mim mesmo e o que de mim permanecerá mesmo que ninguém as conheça.  Ainda que sejam obscuras e ambíguas, elas serão sempre a minha verdade. Ainda que falem de sofrimento e de morte, elas continuarão a viver e a sorrir ternam...

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 Isso a que chamamos alma é apenas uma das manifestações do corpo. E o sonho a sua extensão.

ONDE VAIS AVE DA MINHA INFÂNCIA?

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Onde vais ave da minha infância? Tanto mar tanto céu para habitar E tu vais habitando a espuma breve Lume do nada Como tudo o que é quente e leve. Onde foste minha primeira e última ciência? Tinhas o meu exíguo quarto onde morar Mas foste vaguear ao vento e à neve Em um país perdido e por fundar Pés descalços sobre a terra fria Abandonando em cinza quanto em mim ardia. Ah minha pobre infância, não vagabundes mais Não te percas na noite dos pinhais                                    Não te deites na cova do meu lar.

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Pobre do Bernardo Soares que apenas se deixou boiar no pântano da vida, que não tinha sentimentos nem desejos, que não amava nem deixava de amar, nem odiava nem deixava de odiar porque tudo isso lhe era igual e indiferente,  que tinha pelo mundo a frieza dum costume abandonado, que não pensava em mulheres nem no seu sexo, que olhava para os homens com a sua homossexualidade latente, para o patrão Vasques e a vulgaridade dos seus modos e pensamentos mas com o poder de alguém que o poderia estuprar, e para o guarda livros Moreira com a ternura que se tem a um amante dedicado a quem contava histórias com melancolia e pena. Pobre do Bernardo Soares que esquecera o corpo com o único propósito de salvar a alma através do livro, ele que não acreditava em nada, nem na alma, nem nele mesmo, nem  na humanidade, nem em Deus, nem na improvável salvação ainda que através do livro. Para ele havia apenas o tédio e a resignação de querer escrever  o livro da sua decadência. Foi um n...

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Escrevo a arquitetura do caos. Não há aqui simetria e, muito menos, proporção áurea. Há memórias que se encontram sem saber porquê, retas paralelas que se envolvem, uma bola deslizando sobre a areia molhada e um poço de águas profundas, um ramo de figueira  e uma queda no abismo, uma criança vestida de branco e um tanque de vinho novo, um pequeno comboio que passa, ao longe, acenando, acenando, acenando, e uma flor cor de rosa de pessegueiro arrastada pelo vento que recusa a queda, lembranças inexplicáveis que, um dia, serão explicadas porque haverá sempre um dia em que tudo o que é misterioso será explicado, em que será dado sentido à coisas que o não tinham e em que percebemos que as haveríamos de amar até à impossibilidade. Todas as minha sensações, todas as minhas memórias, todas as minha reflexões são apenas fragmentos de um mundo que se ligam por fios invisíveis e inexplicáveis como inexplicável sou eu e é o mundo, e as invisíveis cordas que o ligam e sustentam no infinito va...