NLD

 Sou, em verdade, um ser digno de pena, porque são dignos de pena os seres dominados pelo coração. Mas eu mais ainda porque o meu coração é um pêndulo incerto que perturba os que me rodeiam e me perturba a mim ainda mais.

Quero e não quero, gosto e não gosto, desejo e não desejo com inclinações que, subitamente, mudam porque saltei da lembrança de uma palavra para outra palavra, de um gesto para outro, de uma cor para outra, de um som para outro, da imagem de alguém em que, num momento, confiei e me fez feliz para a imagem de outro momento em que duvidei e a dúvida me fez infeliz.

Memórias que eu pensava estarem perdidas regressam apenas porque são contrárias a outras memórias. A palavra idade, por exemplo, faz-me sofrer, não porque sinta o temor do tempo que avança sobre mim para, lentamente, me sufocar, mas porque um dia menti sobre a minha idade e alguém importante na minha vida me mentiu sobre a sua idade.

A cor amarela tão rara numa rosa traz para junto de mim uma mulher que nunca vi mas, há largos anos, tem permanecido na minha vida como se a sua presença sufocasse a imagem que dela guardo  na memória. Não sei explicar essa presença a não ser porque ela, como eu, é dominada pelo coração, e o seu coração, como o meu, é um pêndulo incerto, como incerta é a sua presença. Esquecê-la seria uma  forma de infidelidade que não permito a mim mesmo.

Ouço o segundo andamento do quarteto para cordas opus 163, do amado Schubert, e encontro-me no funeral duma criança conduzida, a passos lentos, para a terra , num pequeno caixão aberto onde esvoaçam as rendas brancas. Nessas rendas eu vejo um labirinto que é a vida - e o meu coração caminhando atrás da morte.




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