NLD
162
Depois de Auschwitz, Deus encontra-se a revolver uma lixeira para saber se não é, ele próprio, lixo.
163
Saído da terra, a minha vocação é ser um perdedor porque me abandonei a mim mesmo. É pela perda que sinto mais a vida. As vitórias cansam-me e causam-me tédio, às vezes mesmo náusea. As derrotas estimulam-me para lutar por novas derrotas. Vitória e derrota é tudo um jogo de sombras, mas só a derrota me expõe à luz que eu sei ser uma ilusão.
Mesmo antes de a alcançar, e sabendo que a irei alcançar, a vitória já me cansa. Escrever este livro cansa-me ainda antes de o terminar porque sei que o irei terminar e o terminá-lo será a minha vitória.
Tudo é vaidade? Não. Só a derrota não é vaidade.
Por isso me atrai tanto.
164
Ter abandonado a terra foi para o homem a maior catástrofe. Ele caminha sobre a terra mas já não a sente porque já não afunda no barro os seus pés nus, o que para ele era o grande ato de amor.
Civilizações vieram, o homem prolongou a vida, parece que a irá prolongar até ao impensável. Mas nada se substitui à terra onde ele encontra amor, morte e ressurreição. Nada terá de grande o homem se não conseguir unir os dois únicos mistérios: o amor e a morte.
Unindo-os, ele alcançará a a ressurreição.
165.
Eu deveria ser um homem simples, mas sou um citadino, e todo o citadino é uma artificialidade que, como qualquer máquina, é complexo. E, para além disso, sou um citadino embrenhado no pensamento e na escrita, o que me transformou num labirinto.
Compreendo bem que a morte está na vida, mas tenho esta fé estranha de que a vida também está na morte. Sou feito de células que morrem e nascem a cada instante. Só é possível às células de que sou feito nascerem porque outras morrem, e que a vida se perde quando as células deixam de morrer.
E, no entanto, contrariando o destino reservado ao homem pela natureza, o homem começa agora a matar as células que se cansaram de morrer para fazer viver as células que não conseguiam já viver através da morte de outras.
É estranho que, quando o homem parece estar entregue apenas a si próprio porque destruiu não só a necessidade mas o sentido de Deus, ele se entregue à máquina com a ilusão de que, sendo uma construção sua, é ele mesmo.
Ser poeta é não aceitar ser uma construção, ainda que de si mesmo, é querer ser vida través da morte e morte através da vida, é transformar a inquietação da vida na tranquilidade suprema da morte.
O poeta vive, em vozes íntimas, a alegria e a dor, a esperança e a desilusão, a vitória e a derrota, transformando cada derrota numa vitória interior.
Por isso só os poetas, aceitando a morte e morrendo, se salvam.
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