NLD

 


A minha adolescência e a minha juventude passaram-se como uma febre que se prolonga no tempo, uma doença de corpo e alma agravada por um ambiente sufocante e a convicção de nada ser. Só conseguia dialogar comigo mesmo e não com o mundo que me parecia hostil porque queria que eu fosse como todo o mundo. A minha timidez paralisava a minha palavra, os outros falavam para mim uma linguagem desconhecida, e isso fazia com que a minha fala fosse deslizando em círculos sobre si mesma.

Chegado à idade mais sofrida, os meus vinte anos, vi-me retirante da terra a que pertencia, dentro da noite da floresta dos caminhos que era obrigado a percorrer, sem bússola nem marcos miliários para me guiarem. Passei então a pertencer aos outros, isto é, a estar sempre só.

Entre os onze e os treze anos eu mergulhara na Bíblia e vislumbrava a vida como  uma questão metafísica. Depois, subitamente, entendi que Deus era uma metáfora para a morte, e passei a considerar a existência como uma questão de moral.

Não que acreditasse no homem como novo Deus a substituir aquele que do alto das montanhas do deserto afirmava ser único e verdadeiro, e fazia tremer a terra e espalhar pragas para o considerassem único e verdadeiro e, mesmo assim, só o era para uma dúzia de pequenas tribos de beduínos que frequentemente deixavam de o adorar.

Como acreditar num homem Deus que é uma quase nada no nada, destinado a ser nada?

Com Deus tudo foi permitido. Com o homem quase tudo é permitido. Nunca o homem poderia ser Deus porque lhe falta a essência divina: a liberdade. Mas é essa ausência de liberdade que, às vezes, conduz o homem à sabedoria e à beleza, e que permite que a vida não seja apenas futilidade ou repetição, embora no fim o homem seja um fracasso porque pensou no seu triunfo.

Mas muitas vezes caio nesta crença infantil de que este homem é o último homem antes do Homem, porque sei que, numas Ilhas Afortunadas, todos os anos as crianças são coroados imperadores.

Hoje sou uma contradição. No fundo de mim mesmo interrogo-me e ao mundo, sabendo que nenhuma interrogação vale a serenidade do camponês  que sou, embora eu esteja distante de mim mesmo. Sei que interrogar-me é um ato fútil porque nunca chegará ao nada, embora o nada chegue sempre a quem se interroga. E, no entanto, este instinto infantil do homem de se interrogar tem permitido ao homem conhecer o que se encontra dentro da sua brevidade e da brevidade de todas as coisas, e dar-lhe a ilusão de triunfo e de conforto que, sendo ilusões, são realidades. Porém, todas as suas interrogações só o conduzirão àquilo que ele bem conhecia à partida: que nascimento e morte estão nele, em toda a terra, em todo o universo, lado a lado.

Sou o camponês que não sou, elementar e ignorante, e ainda assim, ser superior, porque ser superior é ter apenas sensações, é não procurar a alma de todas as coisas, é sentir que a alma de todas as coisas está no coração da terra, e que a sua ignorância é força, luz da sabedoria e paz.

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