Chegou o outono. As primeiras chuvas após um longo estio. As folhas caem com calma abandonando a vida, ou com violência fustigadas pelo vento que começou a erguer-se todas as manhãs. As pessoas começam a inclinar-se como que movidas por uma bebedeira triste, aceitando também a sua condição de árvores.

Já vindimei, já esmaguei as uvas, já afundei o bagaço no vinho durante sete dias, três vezes ao dia, já passei o vinho para as cubas e, agora, é o tempo de ele repousar.

Outrora, quando existia a aldeia e a aldeia existia em mim, e tudo era nítido, tanto o orvalho das manhãs como as estrelas da noite, quando, ao fim da tarde, os bois pacientes regressavam a casa, eu via o lume transformado em fumo a sair pelas chaminés. O fumo era claro e melancólico como as vidas que se iam perdendo.

Hoje, esforço-me por regressar à terra, mas este meu esforço é contra a minha verdade, pois eu já não sou o mesmo que era quando ainda criança, e tocava os bois para casa, e me deitava na terra a sonhar de olhos abertos como sonham as estrelas, e assim respirava a terra e o céu, e ambos respiravam suavemente em mim com a força serena dos deuses. Já não ando descalço como quando brincava à cabra cega nem com as calças rotas como quando subia às árvores mais altas para tocar a penugem dos pequenos milhafres.

Tudo mudou em mim e eu em tudo. Sem cura é esta mudança.



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