O NOVO LIVRO DO DESASSOSSEGO
Pobre do Bernardo Soares que do seu quarto num segundo andar da Rua dos Douradores apenas conseguia que a sua viagem e o seu pensamento começassem e terminassem em si.
Pobre como pobre era o seu quarto e o seu olhar sobre o mundo e sobre si, porque nunca acreditou que era muito mais do que ele mesmo, que era muito mais do que os seus sonhos e a ausência deles.
Pobre e negro era o seu pensamento como pobres e negros eram o seu fato e o seu chapéu que envolvia apenas pensamentos negros e redondos, nunca logrando alcançar que ele e o mundo eram uma parábola com uma infinidade de cores. O seu mundo era apenas a sobreloja de uma limpa casa de pasto e o seu quarto na Rua dos Douradores com uma janela que ele nunca tinha a coragem de abrir de para em par para absorver a vida que fervilhava em baixo.
Pobre do Bernardo Soares que nunca pensou que ele era só ele porque os outros passavam pela rua, por tantas ruas que ele, na sua morna melancolia, se recusava a ver. Não lhe interessava a música nem o ruído do mundo ou o seu silêncio. Não acreditava nem deixava de acreditar em qualquer modo de salvação, e nunca pensou que a música é a salvação das almas, sobretudo das mais abandonadas, como a sua.
Pobre do Bernardo Soares que nunca acreditou que o mistério da vida era maior que o mistério da morte, que à beleza do mundo preferia a Rua dos Douradores, que às saudades do amor preferia as saudades do guarda livros Moreira, que à poesia preferia do livro do Razão da casa Vasques & Ca.
Pobre do Bernardo Soares que nunca pensou que a cada dia vivemos o milagre da ressurreição, e que a grandeza de tantos sonos é maior que a grandeza única da morte.
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